Pais reféns de seus filhos

Não é incomum receber em meu consultório um tipo muito específico de família: pais reféns de seu filhos. Semblantes cansados, crianças agitadas, adultos desanimados… E sempre os mesmos discursos: “Ele só come o que quer…”, “ela fica assistindo TV até tarde e só dorme de madrugada…”, “ Ele chora e esperneia quando não fazemos o que ele quer…”. O “ele” ou “ela” das frases anteriores muitas vezes diz respeito a crianças de 2 ou 3 anos!

pais refens

Muitos pais e mães não entendem qual é o pressuposto básico do ser pai e mãe: ser responsável pela vida de uma criança, guiando-a durante seu crescimento, apoiando-a em seu desenvolvimento. A infância é o período crucial na formação da personalidade, da autoestima, da visão de mundo e de hábitos que podemos levar para a vida toda.

Pode até ser chocante para algumas pessoas, mas crianças de 2 ou 3 anos não têm maturidade suficiente para decidir sua hora de dormir, a quantidade de tempo na frente da televisão, o tipo de comida que coloca no prato. Na verdade, nem crianças maiores ou adolescentes têm total capacidade de decidir essas coisas sozinhas (e conheço muitos adultos que também não…).

Cena comum no consultório: criança de 5 anos que adora guloseimas e quer viver só de salgadinhos. Faço as orientações a respeito de uma alimentação saudável e, principalmente sobre os aspectos comportamentais da alimentação, que dependem muito mais das atitudes dos pais do que das vontades da criança. Ao fim das explicações, a mãe se vira para a criança e diz: “Viu, a doutora disse que você tem que comer legumes.” Se fosse tão simples assim…

O que muitos pais querem é “uma vitamina pra abrir o apetite” ou “um calmante para a criança dormir” ou ver se a criança tem algum “problema” porque é muito agitada, ou seja, uma solução simples para problemas que têm raízes profundas na dinâmica familiar e na forma como cada um desempenha seu papel de pai e mãe. A solução para esse enrosco de pais reféns de seu filhos tem que começar obrigatoriamente por uma reflexão por parte dos pais, um olhar atento para a forma como os relacionamentos se desenvolvem na família, reconhecendo as situações que são consequências da ausência de sua autoridade. Não digo autoridade no sentido de que um manda e o outro obedece, mas em um sentido mais amplo, em que o adulto toma atitudes visando o bem-estar da criança, a partir da maturidade que a criança ainda não desenvolveu. E ter autoridade não exclui ter carinho, amor, respeito…

A criança tem todo o direito de querer comer só batatinha frita, ficar no computador até as duas horas da manhã, se jogar no chão da loja porque quer comprar determinado brinquedo. Quem não tem o direito de cair na pegadinha de ceder às vontades da criança é o adulto. Quem tem que manter a calma e o controle da situação é o adulto. Quem tem que ensinar bons hábitos e atitudes é o adulto. E isso cansa, cansa muito… Ainda mais nos dias de hoje, em que já vivemos esgotados pelo ritmo de vida alucinado que levamos…

E muitas vezes, alguns desses comportamentos e teimosias das crianças que nos irritam são uma forma de dizer: “ei, olha pra mim, eu preciso de você, preciso que você me olhe e me enxergue”. E isso é muito sério. Estamos tão focados nas nossas próprias vidas e nos nossos próprios problemas e queremos que as crianças se ajustem ao nosso dia-a-dia, ao nosso humor, à nossa disposição (ou falta de disposição). Às vezes, tudo o que a criança está pedindo é um pouco de atenção, um olhar atencioso, um carinho sem pressa…

Acho que no fundo, os pais não são reféns de seus filhos, mas reféns de si mesmos, de suas próprias atitudes e não-atitudes, da falta de uma visão madura sobre si próprios e sobre o que significa ser pai e mãe. E o único “remédio” para isso é a mudança de comportamento dos pais e não ficar tentando “consertar” as crianças…

Sobre Dra. Patricia Carrenho Ruiz

Patricia Carrenho Ruiz, médica pediatra e neonatologista. CRM 113719. Mãe do Lucas, nascido em janeiro de 2012, atualmente, se dedica a ser uma boa mãe pediatra e também uma boa pediatra mãe, refletindo sobre aspectos técnicos, mas também humanísticos dos cuidados com as crianças. Consultório em São José dos Campos. Contato (12) 3922-0331

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